21/06/2010

Reduzir as coisas a nada

Discutir comigo é irritante. Sei disso. Porque muitas vezes argumento uma perspectiva que na realidade não defendo para prolongar a discussão e ter a possibilidade de conhecer, como diz a canção de Sérgio Godinho “p'ra ver também um pouco do lado do adversário, do lado contrário”. E irrita-me, perigosamente, quando tenho um interlocutor que reduz as coisas a nada.

Hoje isso aconteceu-me numa conversa simples. Sobre a morte de José Saramago. Porque, ainda antes de entrarmos na fase da discussão, ainda no prelúdio, o meu interlocutor resume tudo a isto: “Um populista, um demagogo”. Sem mais nada. Toda a vida e obra do único Nobel português da Literatura se reduziu à sua intervenção pública, política ou às polémicas. Não adiantei, porque tenho a certeza que se perguntasse a resposta seria de que nunca leu nenhum livro de Saramago.

Li quatro, talvez cinco livros de Saramago, incluindo “Os Poemas Possíveis”. Lerei mais com certeza. Mas estes quatro ou cinco bastaram para saber que era muito mais que demagogia ou populismo. Para perceber porque marcou de forma tão evidente a literatura portuguesa e mundial. Para gostar. Porque antes do Nobel descobri o “Ensaio sobre a cegueira” que logo elegi como um dos livros da minha vida.

Por estes dias Mário Soares contou que, aquando do lançamento de “O ano da morte de Ricardo Reis”, escreveu a Saramago a dizer: não gosto de si, o senhor não gosta de mim, mas tenho de lhe dizer que é um grande escritor. Ao que Saramago lhe respondeu: parece que o senhor gosta mais de mim que eu de si, dando-lhe conta da satisfação que sentiu ao receber a missiva do então primeiro-ministro.

O padre Carreira das Neves contou, ontem, que conheceu Saramago aquando do lançamento de “Caim”, num frente a frente televisivo. E que ficaram amigos, que Carreira das Neves iria em breve passar uns dias a Lanzarote para privar com Saramago e com Pilar, uma vez que ele e o escritor ambicionavam escrutinar melhor os seus argumentos e pontos de vista.

O que hoje vivi deixa-me profundamente triste. Preferia ter tido uma implacável discussão. Quando a cultura, quando um dos maiores vultos da Cultura do último século português, é vítima de uma mera avaliação de valor, intrinsecamente política, mesquinha e bordalenga, tenho para mim que merecemos esta merda de País.

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