10/05/2010

Corte, Costura e Remendos

I. Corte
Esta crise está a ser combatida por via do corte. Mas o caminho fica a meio se após o corte não houver costura. No fim, o trapo fica esfrangalhado e é nada.

O problema português não é conjuntural. A crise internacional só expôs uma fractura escondida. O nosso problema é estrutural, vem de longe, é da responsabilidade de todos os Governos dos últimos 30 anos e chama-se Economia.

Certo, há que cortar. E há que cortar mais e em muita coisa. Tenho dúvidas em relação às prioridades do corte, uma vez que vejo pouco combate ao desperdício e os funcionários públicos são sempre as primeiras vítimas. Fala-se muito da pouca produtividade dos funcionários, da fraca eficiência dos serviços, mas ignora-se, em geral, a realidade concreta das coisas. E que grande parte dessa ineficiência poderia ser ultrapassada com medidas simples, na maior parte amigas da transparência, mas muitas vezes ameaçadoras para decisores e políticos.

II. Costura
O problema é conjuntural, dizia acima. E chama-se Economia, acrescentava. Pois bem: Portugal tem uma estrutura económica débil, arcaica e, muitas vezes, saloia. Podemos regularizar o défice, mas se não refundarmos a nossa capacidade económica, em poucos anos estamos na mesma. Foi o que aconteceu até aqui, vivemos de crise em crise, justamente, porque não temos economia. Desperdiçámos, ao longo dos últimos anos, onde encontrámos períodos de enorme potencial, a oportunidade de criar um País economicamente mais sólido. Para isso bastava ter aplicado, correcta e seriamente, como fizeram outros países europeus, os milhares de milhões de fundos comunitários que por aí passaram.

A Europa faz bons diagnósticos, planeia bem, tem os assuntos bem documentados. Leiam-se os documentos estratégicos do QREN (nacional e dos outros países), mas a liberdade de cada um ainda é demasiado grande. E o chico-espertismo lusitano tem ignorado sucessivamente as estratégias desenhadas. A nossa agricultura é inexistente e vive dos subsídios; as pescas foram delapidadas e vivem dos subsídios – ok!, são dois sectores sensíveis. As empresas vivem das linhas de financiamento. Não investem em projectos por acreditarem ou precisarem deles, investem porque existem milhões de euros para isto ou para aquilo. A indústria vai-se aliando às universidades, e bem, mas sem investir um tostão: financiamento para isto, financiamento para aquilo. Não há empreendedorismo. O risco é básico no conceito de empresa. Como os empresários portugueses não arriscam o mínimo, creio que não temos empresas.

III. Remendos
O que me espanta, por estes dias em que se apregoam soluções milagrosas, é que todas as medidas anunciadas são imediatas: reduzir o défice. Certíssimo, é imperioso reduzir. Sim, há que fazer cortes e sacrifícios. E depois? A seguir? Continuamos a ficar mais pobres, até nos roubarem os ossos do prato? Por esses concelhos fora, um pouco por todo o País à excepção das grandes áreas metropolitanas, o número de empregos gerados pelo sector dos serviços é enorme. Grande parte deles no sector público. Porquê? Porque não há economia, não há empresas, não há iniciativa privada. A que existe é frágil, gerida sem profissionalismo, muitas vezes encostada ao Estado, ao pequeno caciquismo local e a viver à sombra de interesses ou a fazer-lhes uma confortável sombra. Outra é de capital intensivo, que é bom, gera emprego, contribui para as exportações, mas é efémero. Fecha-se o ciclo e ficamos com as calças na mão – é o que acontece na indústria automóvel, na petroquímica, nos recursos naturais endógenos.

Ao Estado não caberá fazer a Economia. Mas deve-lhe criar condições, estimulá-la e imprimir rigor. Ser exigente. Quando se atribui um subsídio tem de ser exigir que ele se converta numa mais-valia para a sociedade – isto também é do conceito empresa, criar mais-valias sociais. Imprimir políticas sérias de responsabilidade social. Se a atribuição de financiamentos não é fiscalizada, se a burla é impune, chega-se a este ponto. E alguns investimentos públicos são indispensáveis para criar condições, sobretudo para as exportações. Sem eles nem o capital intensivo nos vale - por isso Sines ainda é o que é, aguarda há décadas por infra-estruturas básicas de mobilidade, por exemplo.

O que custa ao aceitar estes sacrifícios é que parece que os vamos fazer cegamente. Para equilibrar as contas. Só. Depois, logo se vê. Pode ser que vivamos meia dúzia de anos folgados e, a seguir, aperta-se. Mas o Estado de Bem-Estar tem sempre exigências novas. E das duas umas: ou abdicamos, de vez, do bem-estar, ou instala-se a lei da selva.

Acredito que vai ser difícil conter a contestação social, as manifestações e até, quem sabe, evitar cenários de violência nas ruas. As pessoas estão cansadas e duvido que ainda acreditem numa promessa longínqua, tantas vezes repetida. Há menos de um mês, o primeiro-ministro garantia, no Parlamento, que não havia lugar a subida de impostos.

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